Lisboa em Azulejo

05. FONTES ICONOGRÁFICAS

Em artigo publicado em 1994, José Meco foi o primeiro investigador a preocupar-se com as fontes iconográficas utilizadas no Grande Panorama de Lisboa ao considerar uma das gravuras de Dirck van der Stoop, pertencente à série celebrativa do casamento de D. Catarina de Bragança, como modelo inspirativo da execução do Torreão do Paço da Ribeira (Meco, 1994, pp. 85-113).

Posteriormente, tivemos ocasião de juntar outras fontes gravadas por Stoop a certos pormenores representados no painel de azulejos, nomeadamente o Palácio dos Marqueses de Castelo Rodrigo e a Igreja de São Paulo. Como se pode verificar, o painel apresenta um desenho menos preciso na transferência do modelo e, neste sentido, concordamos com o autor acima citado quando refere que as "representações rigorosas da cidade não eram a preocupação constante ou prioritária dos pintores de azulejos". Ao associar a representação do Terreiro do Paço com a gravura daquele pintor holandês, José Meco levantava o véu em torno de uma questão complexa, relacionada com a encomenda, a produção e a disseminação de uma das séries iconográficas mais importantes da Lisboa pós-Restauração.

 

Como é sabido, entre 1661 e 1662, Stoop produziu 16 gravuras a água-forte, sendo 8 a representação de vistas da cidade de Lisboa e as restantes a visualização das festas de casamento da Rainha de Inglaterra. Toda a problemática tem sido alvo de recente re-avaliação e, embora se tenha chegado a conclusões importantes, a questão da divulgação e da circulação das imagens continua em aberto (Flor, S. 2012).

 

No entanto, a releitura do contexto literário da época trouxe-nos alguma luz sobre o assunto que aqui trazemos para reflexão. É do conhecimento geral que, em 1662, foram produzidos seis textos em torno daquele casamento régio, os quais relatavam as festas, a viagem até Inglaterra, o encontro com a comitiva de Carlos II na cidade de Portsmouth, bem como a chegada a Hampton-Court e a Entrada Triunfal na capital inglesa, ocorrida a 23 de Agosto de 1662. Sabe-se inclusivamente que, em Inglaterra, foram publicados mais três textos sob a orientação do Padre Sebastião da Fonseca, figura da confiança político-religiosa da Rainha D. Luísa de Gusmão.

 

Lida no seu conjunto, a vasta literatura de cariz nacionalista publicada ao tempo levou-nos a considerar a existência de um projecto de edição unitária que incluísse as imagens impressas a ilustrar os vários textos propagandísticos. A colecção de Diogo Barbosa Machado (1682-1772), pertencente hoje aos fundos da Biblioteca do Rio de Janeiro, poderá reforçar esta nossa suspeita. Com efeito, segundo os mais recentes estudos sobre a colecção, sabemos que possuía centenas de opúsculos ou folhetos, coligidos em cerca de 134 tomos, nos quais se incluíam alguns dos relatos escritos no âmbito das Festas de 1661-1662, com a particularidade de ter apensas as águas-fortes abertas por Dirck Stoop (Monteiro 2005, pp. 127-154), (Faria, 2009, pp. 361-384). Desta forma, anexa à obra de António de Sousa de Macedo – Relação das Festas - encontravam-se as seguintes gravuras: “O Magnifique Entrada do Ambassador e Admiral Montagu em Lisboa”; “Reais Festas e Arcos Triunfais que se fizerão na partida da Sereníssima D. Catherina”; “Vista de Lisboa e como a Rainha da Grã- Bretanha se Embarquo para Inglaterrae, por último, “O chegado do duque Jorck no Cannal entre o froto d’Englaterra” (fig. 5) (Galvão,1876-77, pp. 249-257).

 

De igual modo, os gravados de Dirck Stoop foram anexados às obras publicadas pelo Padre Sebastião da Fonseca: a título de exemplo refira-se que a “Relaçam dedicada A Serenissima Senhora Rainha da Gran Bretanha da Iornada que fes de Lixboa athe Portsmouth” tinha apensa a gravura “Disambarcação da Rainha da Gran Bretanha em Portsmui”. Por sua vez, a “Relaçam dedicada as Magestades de Carlos e Catherina Reys da Gran Bretanha da Jornada que fiserão de Porthsmouth the Antoncourt e entrada de Londres” apresentava a gravura "Passage del Rey de gran Bretanha Carolo II e o Rainha Dona Catarina de Portsmui per a Hamton-Court” e, finalmente, a “Relaçam das festas de Palacio e grandesas de Londres...”, publicada entre 1662 e 1663 em Londres na oficina de J. Martin, ostentava a imagem da “Entrada publica que a S.ma Rainha da Grã-Bretanha fés na cidade de Londres e como magnificamente foi recebida da nobresa e povo della em 2 de Setembro 1662".

 

Em nossa opinião, a inclusão das gravuras de Stoop, acompanhando os textos de António de Sousa de Macedo e do Padre Sebastião da Fonseca, não deverá constituir mera coincidência estética na organização da colecção de Barbosa Machado. Embora não tivéssemos notícia das gravuras terem efectivamente pertencido às obras, o que se verifica é uma articulação perfeita entre texto e imagem. Com efeito, a integração de gravuras em textos reflecte a necessidade de empregar "a imagem impressa como fonte histórica" e, neste sentido, a Coroa portuguesa seguiu o costume das mais importantes monarquias europeias onde, por exemplo, as batalhas (terrestres e navais) eram registadas por artistas especializados em tal género (Faria, 2009, p. 381 e Costa, 1925).

 

Os holandeses distinguiram-se nessa particularidade da pintura e, por isso, encontramos grandes nomes vindos dos Países Baixos a trabalhar nas cortes inglesa, francesa e espanhola. Uma vez mais reforçamos o papel de Dirck Stoop na disseminação da História de Portugal, dos seus acontecimentos mais recentes e do património cultural da capital, desde os monumentos da época dos Descobrimentos até ao Paço da Ribeira, centro do poder da Monarquia restaurada.

 

Embora algumas das gravuras deste pintor tivessem sido reproduzidas em obras europeias coetâneas, todos os autores que se debruçaram sobre a figura de Stoop consideraram o conjunto no seu todo bastante raro e será necessário chegar até ao século XIX para, em Portugal, assistirmos aos esforços de D. Fernando II para reunir uma boa parte dele. O próprio monarca confessou em texto publicado postumamente que "as estampas de Stoop são estimadíssimas pelos amadores de estampas antigas e é bem singular que nós, que estes apontamentos escrevemos, não achássemos até agora, depois de pesquisas e indagações de muitos anos em Portugal senão uma única estampa de Stoop" (D. Fernando II, 1887, pp. 126-127), (Soares, 1971, pp. 616-617) e (Soares, 1947, pp. 310-311) na qual se referem as obras Theatri Europae Sechster und letzer... durch Juhennem Georgium..., Franckfurt, 1663 e Beschryving van Spanjen en Portugal Waar... 1716, esta editada por Pieter van der Aa. Neste contexto, percebemos melhor o valor que a presença desta fonte iconográfica tem para a execução do Grande panorama de Lisboa.

 

Em pleno século XVII, poucos seriam os possuidores das gravuras produzidas já em solo inglês, como ficou provado pelos estudos de Ernesto Soares e Antony Griffiths, o que significa que as mesmas não estavam facilmente à disposição dos potenciais interessados na sua aquisição e posterior divulgação (Griffiths, 1998), (Bryan, 1903, p. 768). Segundo este autor, existiam na colecção Sutherland e na do Arquiduque Carlos em Viena séries completas, tanto do Casamento como das Vistas de Lisboa respectivamente, embora não nos assegure que as mesmas estivessem na posse destes proprietários desde o século XVII.

 

Assim, a chegada de D. Catarina de Bragança a Lisboa em 1693 poderá ter alterado a situação, não só pelo saudosismo de ver a Rainha regressar e relembrar os tempos áureos da concretização do Tratado de Whitehall, como também pelo regresso físico desse material iconográfico.

 

Como recentemente tivemos a oportunidade de comprovar, desde 1699 que D. Catarina de Bragança, em conjunto com D. Pedro II, adquiria terrenos junto ao sítio da Bemposta, considerado local aprazível, onde pudesse finalmente retirar-se a fim de levar uma vida mais afastada das arrelias da corte (Flor, S. 2012), (Coutinho, 2012). Ao todo foram compradas cerca de 25 propriedades em torno da Rua Larga da Bemposta, a saber Carreira dos Cavalos, Campo de Santa Bárbara, Cabeço de Bola, etc. Os vendedores variaram observando-se, em inúmeras escrituras, o nome da mais alta nobreza até ao mais simples artífice.

 

No meio deste rol, um nome será de salientar: o do Desembargador António Ferreira de Macedo, como vimos filho de Álvaro Ferreira de Macedo, um dos mais eminentes moradores das casas a Santiago, a quem D. Catarina comprou uma Quinta na Carreira dos Cavalos pelo preço de 1600 rs. (Flor, S. 2012).

 

A proximidade residencial, bem como as relações privilegiadas de negócio estabelecidas entre o Desembargador e a entourage de D. Catarina de Bragança, em particular o seu esmoler-mor, terão fornecido a ocasião do conhecimento, troca e influência daquele gravado junto a uma obra de azulejo que, por esses anos, se executava numa oficina lisboeta. Seguindo a prática corrente nas relações estabelecidas entre encomendadores e artistas, torna-se pois muito provável que Ferreira de Macedo fornecesse o desenho gravado para a pintura da frente Ribeirinha, verdadeiro cartão-de-visita do porto lisboeta, onde a família Ferreira de Macedo prosperara através da sua actividade mercantil.

 

 

 

 

in FLOR, Pedro; COUTINHO, Maria João Pereira; FERREIRA, Sílvia; FLOR, Susana Varela, "Grande panorama de Lisboa em Azulejo: novos contributos para a fixação da data, encomenda e autoria", Revista de História da Arte, nº 11, Lisboa, Instituto de História da Arte, 2014, pp. 87-105.

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