Lisboa em Azulejo

06. A EXECUÇÃO

Apurada a datação e as circunstâncias da encomenda do Grande panorama de Lisboa, importa agora debruçarmo-nos sobre a questão da autoria, partindo de dois pressupostos que nos parecem evidentes. Por um lado, assumimos que se trata de uma peça realizada na viragem da centúria de Seiscentos, isto é, pelos anos de 1698 e 1699. Por outro lado, apoiados em análises laboratoriais, consideramos estar perante uma obra executada em oficina nacional, o que exclui a hipótese, bastante comum ao tempo, de se poder tratar de uma encomenda estrangeira (Simões, 1959, pp. 29-36), (Carvalho, Vaz, et al., 2009), (Flor, Carvalho et al., 2012). A questão da autoria do painel não é fácil de abordar, não só pela manifesta escassez de elementos documentais com que nos deparámos, mas também porque a diversidade de artistas activos no final do século XVII e princípios do XVIII, habilitados a executar obra de azulejaria, parte dela hoje desaparecida, relança a problemática em torno da sempre difícil tarefa de atribuição (Serrão, 2001, pp. 125-148), (Simões, 2002) e (Coutinho, Ferreira, et al., 2010).

Augusto Vieira da Silva, o primeiro como vimos a pronunciar-se criticamente sobre o Grande panorama, limita-se apenas a aludir ao "desconhecido artista", ou ao "desenhador" da obra, sem tentar uma atribuição concreta: “Os desenhos parciais, de que o desconhecido artista se serviu para compor o panorama de Lisboa, não foram, na sua reunião, subordinados rigorosamente à sua exacta e sucessiva situação topográfica. Se isto é assim para os painéis centrais, então quando chegou aos dos extremos o desenhador pôs de parte toda a consideração das distâncias e acumulou ou encaixou os edifícios ao acaso ou onde supôs que melhor efeito produziria" (Vieira da Silva, 1932, p. 245). Alguns anos mais tarde (1947), João Miguel dos Santos Simões, sem concretizar um nome de um artista em particular, reconhece na concepção e execução do painel o fabrico de uma oficina de Lisboa (Simões, 1947, p. 70).

 

A primeira atribuição mais concreta que encontrámos durante a nossa pesquisa foi levada a cabo por José Meco que, num estudo publicado em 1981, levanta a hipótese de se tratar do pintor Gabriel del Barco, com actividade conhecida entre 1669, data da chegada a Portugal e 1703, momento que coincidirá com a última obra realizada (Simões, 1973, p. 51), (Meco, 1989, pp. 66-69) e (Carvalho, 2011, pp. 227-244). Esta atribuição, bem como a datação proposta de cerca de 1700 para a execução do Grande panorama foram consideradas por vários autores, após a publicação do estudo complementar de José Meco em 1994, e que demos notícia no início deste trabalho. Sublinhe-se que esta tese foi, desde cedo, aceite pelo Museu Nacional do Azulejo e ainda hoje prevalece no âmbito da exposição permanente da peça e na literatura produzida com a chancela desta instituição museológica (Azulejos, 1991, p. 129), (Pereira, 2007, p. 300) (Mântua, 2008, pp. 18-25) (Matos, 2009, p. 9) (Flor, S. 2009, pp. 72-73) e (Pais, 2011, 74-77).

 

Para o presente estudo do painel de azulejos, desenvolvemos esforços para encontrar outros dados relativos à questão da autoria que ajudassem a confirmar ou, pelo contrário, afastar a tese sugerida por José Meco.

 

De um modo geral, entre a pesquisa documental e a análise plástica comparativa entre o Grande panorama de Lisboa e as peças devidas à arte de Gabriel del Barco, concordamos com a atribuição proposta, sendo que a datação, como vimos, deverá ser afinada para os anos de 1698 e 1699. É certo que a comparação do painel que representa a vista de Lisboa com a obra narrativa e/ou decorativa de Barco reveste-se de enorme complexidade, visto que a temática iconográfica por si só obrigou o autor a utilizar moldes e estratégias próprias da arte da pintura, dando, por exemplo, primazia à figuração dos primeiros planos na economia geral da cena.

 

No entanto, a expressividade emprestada às pinceladas de azul, em interessantes aguadas de densidades progressivas, é comum a todas as obras de Barco e está bem patente no Grande panorama de Lisboa (fig. 6). Além disso, este pintor, que ao tempo explorava experimentalmente as potencialidades dessas aguadas, revela certas dificuldades, algo ingénuas, no lançamento arquitectónico de edifícios e espaços, com notórias deficiências na perspectivação dos mesmos. A excepção regista-se apenas na pintura do torreão do Paço da Ribeira, onde Gabriel del Barco utilizou uma gravura e, por conseguinte, superou a dificuldade, assegurando a correcta representação deste importante edifício civil. De resto, este recurso foi por diversas vezes aplicado pelos pintores da época, caso do cunhado e provável colaborador Marcos da Cruz (c.1610-1683), que se afigura sempre melhor pintor, quando aproveita gravuras para a execução das telas.

 

As semelhanças plásticas patentes entre a obra de Barco e o Grande panorama, tanto nas arquitecturas, como nos fundos paisagísticos de nuvens cumuliformes e de relevo acidentado, com apontamentos de natureza vegetal, são por demais evidentes e reforçam aquilo que José Meco antevira nos trabalhos dedicados ao pintor espanhol.

 

Todavia, estamos em crer que, atendendo às dimensões consideráveis do painel e ao número elevado de encomendas que Gabriel del Barco por esses anos satisfazia para Évora, Arraiolos e outros locais em Lisboa, o Grande panorama resulta com forte probabilidade de uma obra oficinal, isto é, uma peça que contou com a participação de mais do que um pintor na sua execução. Com actividade comprovada (e assinada) que deve remontar pelo menos ao início da década de 90 na empreitada azulejar da igreja de São Vítor em Braga (fig. 7), entre 1698 e 1700, Gabriel del Barco e a sua oficina tinham agora que dar resposta a várias encomendas de vulto, designadamente para a Sala da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Igreja de São Mamede e para a Igreja de Santiago em Évora; para a igreja do Convento dos Lóios em Arraiolos e para locais ainda não determinados na cidade de Lisboa, além do revestimento da capela-mor da igreja de São Bartolomeu da Charneca (Simões, 1979, p. 23).

 

Esta afirmação encontra-se perfeitamente adequada às práticas de pintura da época e a de azulejo não constituiu excepção. Além disso, é visível em várias zonas do painel outras sensibilidades plásticas distintas da mão dominante de Barco, ainda que detenha uma notável unidade de estilo. Sem encontrar evidências documentais que o comprovem, ficam estas chamadas de atenção para futuras pesquisas a empreender no âmbito do funcionamento das oficinas de pintura em Lisboa no período barroco.

 

A pesquisa documental desenvolvida para a redacção do presente artigo revelou-se uma vez mais profícua, na medida em que a análise demorada dos “Róis de Confessados” da freguesia de Santiago, designadamente os que habitavam a rua larga ou a rua direita de Santiago, mostrou alguns dados importantes para a problemática da autoria do Grande panorama. Com efeito, a leitura relativa ao ano de 1700, data que coincide sensivelmente com a época da execução e montagem do painel, revela-nos que para além dos habituais moradores da casa de Álvaro Ferreira de Macedo (referidos por exemplo nos anos imediatamente anteriores e subsequentes), estão também associados os nomes de um Manuel dos Santos e um Manuel da Costa. Se no primeiro caso não possuímos a respectiva indicação do estatuto social, o mesmo não acontece com o segundo que sabemos ser um pintor.

 

Esta circunstância conduz-nos à hipótese de se tratar de um artista envolvido na empreitada do Grande panorama, quer como aprendiz de Gabriel del Barco, quer como colaborador com oficina independente. É possível que este artista seja o mesmo que é dado como morador na rua de São Bento às Trinas e referido como pintor de azulejo uns anos mais tarde, em 1712, bem como aquele que surge mencionado na Irmandade de S. Lucas nos anos de 1714 e 1720 (Teixeira, 1931, pp. 83 e 90) e (Queirós, 2002, p. 427). Além destas ocorrências, geralmente citadas a propósito do pintor Manuel da Costa, identificámos outra que o localiza na freguesia de Santa Catarina em 1718 como morador nas Escadinhas da Banda do Mar (Coutinho, Ferreira, et. al, 2011, p. 46).

 

Poderemos ainda aceitar como hipótese de trabalho que a referência a Manuel dos Santos naquele “Rol” aluda ao pintor de azulejo do mesmo nome que teve o seu início de carreira junto de Gabriel del Barco, como ficou demonstrado por José Meco. A obra atribuível a Manuel dos Santos distribui-se entre a igreja paroquial de Santiago e São Mateus do Sardoal (1703), onde terá colaborado em parceria com o mestre; o conjunto do convento de Nossa Senhora da Conceição de Estremoz (1706); o conjunto da igreja da Misericórdia de Olivença (1723), sendo que a mais antiga referência documental ao artista remonte ao ano de 1702 nos registos da Irmandade de S. Lucas (Teixeira, 1931, p. 76) e (Meco, 1980, pp. 75-160). 

 

Infelizmente, os dados agora revelados não são inequívocos quanto à questão de uma possível intervenção destes (dois?) pintores na obra do Grande panorama que teve como principal responsável Gabriel del Barco. No entanto, tomando por base a análise plástica efectuada e a pesquisa documental em torno dos moradores da casa de Álvaro Ferreira de Macedo, somos obrigados a discutir novas propostas de trabalho e tentar, num futuro próximo, esclarecer a questão dos epígonos de Barco em Lisboa, pouco antes do fulgor artístico do apelidado Ciclo dos Mestres.

 

 

 

 

in FLOR, Pedro; COUTINHO, Maria João Pereira; FERREIRA, Sílvia; FLOR, Susana Varela, "Grande panorama de Lisboa em Azulejo: novos contributos para a fixação da data, encomenda e autoria", Revista de História da Arte, nº 11, Lisboa, Instituto de História da Arte, 2014, pp. 87-105.

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